Publicado por: Renan Accioly Wamser | setembro 2, 2009

Traumas e delírios

Quando minha barba não passava de um misero bigodinho ralo e meus braços e pernas eram tão grandes que esbarravam em tudo que tocava, meus problemas eram outros. Cansado de não me destacar em prática esportiva alguma, useis de meu tamanho e característica mais evidente em mim: o “desengoncismo”. Para driblar, não literalmente, meus problemas aprendi um esporte secundário e pouco reconhecido, era o tal do Spiribol. Para as pessoas que se aglomeravam nas quadras de futebol éramos apenas os perdedores que compravam torta de frango no intervalo e davam socos em bolas ovais amarradas em imensas hastes de ferro.

Para nós não. Era um jeito de conseguir um pouco de respeito. De suar, machucar e se tornar vitorioso fazendo a seqüência correta, e o melhor, sem rebaixar ou diminuir ninguém. Sempre achei que não precisávamos passar pelas continuas humilhações por não ser hábil com uma bola. Todos éramos estranhos, mas se existe algum ser divino que nos criou, ele deve ter feito isso por alguma razão. Tinha o japonês negro que possuía ereções continuas com a calça de ginástica e alertava o pessoal gritando: “Alerta vermelho, alerta vermelho”. O garoto com bigode super evoluído que foi apelidado de caminhoneiro, Valdeir Capetinha que lia Mein Kampf com 15 anos e a ex-magreza que vos escreve.

E além de nós e dos garotos populares com suas chuteiras da Topper, havia as garotas. Público estimado por todos, porque se estivesse contato com elas você tinha “as moral” do nosso aclamado colégio. Alguns abaixam as calças mostrando suas cuecas amareladas para atrair suas atenções ou iam para as boates com as desejadas de nossa sala. A maioria do nosso grupo já se apaixonou por alguma delas. Os hormônios naquela época estavam pipocando loucamente e os pêlos na mão cresciam como erva-daninha em canteiro de vovó. Mas acredite, eu não tinha ternura pelas peitudinhas e pós-desenvolvidas da nossa idade.

Não gostava das meninas de rosa, daqueles que se embelezam e pareciam mulheres adultas. Gostava das que jogavam videogame e abriam um sorriso quando as chamávamos para brincar de pique-esconde ou cabra-cega. Com roupas casuais, usavam as listras e até bermudinhas simples. Não tinham o ar de superioridade porque podiam seduzir os garotos. Saudosos tempos em que a relação entre meninos e meninas era baseada na inocência e não apenas em jogos sexuais que definem uma ilusão de independência e superioridade.

Quando penso nas pessoas que naquela época me traumatizaram ou me provocaram um choque inesquecível penso primeiramente em meu irmão. Anos de convívio ao seu lado nos confabularam dezenas de traumas e brigas que já acabaram com cadeirada no olho ou arremesso de óleo quente. Mas foi quando assisti Anjo Malvado que identifiquei o sabor de destruição, mentira e desordem que há anos me perseguia. Atirar na asa-delta dos meus bonecos GIJOE me comprovou isso. Algumas outras pessoas também me espantaram:

– A bolada de basquete que o professor de Educação Física atirou na minha face porque supostamente eu estava desatento. Chorei na frente de toda a turma.

– O dia em que meu padrinho atirou na cabeça da cadela Pretinha com uma espingarda porque ela “latia demais”.

– Ao abrir os olhos, no dia em que acordei mais cedo para ir para escola, visualizei meu irmão fazendo movimentos com seus pênis na cama ao lado.

– O roubo do meu game boy pocket realizado pelo meu suposto melhor amigo.

– O dia em que uma garota pediu meu colar de prata e depois nunca mais falou comigo. (Considero um furto sentimental também).

Já faz quase uma década que a maioria destes fatos ocorreram e acho que nunca sairão de minha memória. De lá pra cá, meu corpo sofreu algumas mudanças, percebi que os atletas e as garotas antes desenvolvidos sofrem de algum tipo de retrocesso mental e já não me sinto um cara tão estranho porque conheci outros estranhos. Mas o que realmente não sofreu nenhum tipo de mudança é que ainda gosto daquele tipo de garota e encontrei uma só pra mim. Ela é bem daquele tipo: minha amiga, minha parceira de videogame, meu amor.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | junho 23, 2009

O telefone tocou novamente

Caminhando por entre as estradas largas da rodovia que cruza a casa de minha avó, me aproximei do telefone público. Era hora de matar um pouco da saudade que consome diariamente minha vida. Acompanhada de uma vontade absurda de ir embora, eu ouço por entre milhares de quilômetros de fios as vozes daqueles que eu clamo por estarem ao meu lado. Gente simples que somente quer escutar o que você tem a dizer e de certa maneira levar a rotina de ambos a um trabalho menos desesperador.

Um sol absurdo descia por entre um trilhado de árvores e passava por cima de mim sem nenhuma piedade. Telefone distante, mas desta vez ocupado. Havia um senhor na beira dos seus 60 anos, tentando discar os números que já pareciam meio opacos sem os óculos que havia deixado em casa. Puxou o gancho, já gasto pelos lamentos, risos e conversas de centenas de outras pessoas e clamou:

– Mamãe. É você?

– É seu filho, sim. Como está a senhora?

– Mãezinha, estou juntando dinheiro pra te visitar. Vou pro Rio de Janeiro assim que o emprego me permitir. Daria tudo para ter você comigo.

 Uma lágrima escorreu por entre os olhos e o gancho negro do telefone. Exatamente àquela hora estava eu sentado ao meio-fio da calçada em frente e essa cena apertou meu peito de maneira tão avassaladora que não me contive. Imaginei, acompanhado as lágrimas do filho, que pior do que perder alguma pessoa e ter de se contentar com isso, é estar longe de alguém e por ocasiões da vida estar privado de tê-la ao seu lado. Limitar o sentimento é morrer aos poucos.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | dezembro 28, 2008

Congratulando a mim mesmo.

Ano novo, vida nova. Os caralhudos que me poupém, mas os clichês eternos que brindamos neste nas festividades já me deram no saco. A minha única surpresa é quanto ao presente que vovó me dará, contabilizando meu saldo de presentes, chegaria a mediocre pontuação de um pacote com três cuecas P, tamanho este que caberia em meu primo de 12 anos. E tem uma blusa de telinha da Riachuelo, que pelo menos não tem estampa. Nem me preocupo mais com isso. Acho que foi o melhor dos natais, pois passei com a tarde com a pessoa que gosto. Não é o é um simples desejo, é ligar pra perguntar como estava a saúde dela e sentir um aperto no peito de saudade, é disso que estou falando.

Se parássemos para pensar em como relacionamento é algo complexo e totalmente infudado acho que nem nos prestariamos ao esforço de tentar algo com qualquer que seja. Mas são pequenos momentos de intensa e digna espontaniedade que passamos ao lado de quem se gosta que nos fazem esquecer a racionalidade. Não estou falando de perversões sexuais, nem nada disso. Falo de caminhar de mãos dadas, olhar pra cima e ver um sorriso brando no rosto de quem lhe apetece. Posso estar sendo completamente amoroso e falando firulas que tantos tentaram definir, mas já não posso esconder.

Acordando de manhã agora já não tenho dúvidas do que quero e nem do que vou fazer no dia, esperando que o tempo corra rapidamente. Eu vou beber e ver as pessoas que gosto. Não me preocupo com nada além de minha própria felicidade. Sabe por quê? Porque eu estou farto de exigências. Eu só quero isso. Quero passear no supermercado com mamãe e comprar duas bohemias. Quero andar até o banana shopping na chuva. Eu quero tudo e também não quero mais nada.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | novembro 23, 2008

Tudo sobre minha mãe

— Que merda! Será que vou ter que fazer um convite especial pra você sair dessa porra desse computador e vir comer?

 

Posso ouvir os berros vindos da cozinha ecoando pelo vasto corredor do nosso velho apartamento. Os tacos de madeira que compunham o chão da casa já não brilhavam mais e era difícil achar algum que não estivesse solto. Era uma casa grande, com enfeites em todo lado. Tinha aqueles bibelôs de animaizinhos e um monte de quadro-tapete, herança de vovó. Lembro-me bem da Monalisa gigante que ficava na sala observando cada um que passasse por lá. Não saberia dizer quantas vezes deixei de ir à cozinha beber água pra não topar com ela.

 

Eu e meu irmão dividíamos o mesmo quarto, isso nunca foi um problema pra mim. Ao contrário, achava bem interessante. Não gostava de dormir sozinho e tinha medo de todos esses mitos infantis. Mas a situação se tornou desesperadora quando entrou a moda de filmes de suspense estilo Pânico e eu não conseguia dormir, esperando o telefone tocar a qualquer momento e ouvir: “Hello, Renan. What´s your favorite terror movie?”. Meu pai rezava comigo antes de dormir e cheguei a passar a noite no tapete ao lado da cama de meus pais para estampar qualquer tipo de ameaça.

 

Todos esses medos passaram, mas eles tiveram que acontecer para provar que fracote cada um pode se tornar. E se tem algo que me fortificou nessa infância foram os gritos de mamãe. Costumávamos estudar na mesa da cozinha e a gritaria rolava solta se eu não conseguisse identificar o numerador do denominador e esquecer o Baskara nas equações de segundo grau. Chorei demais naquela época, mas depois que passei a ser independente nos estudos sinto falta de cada palavrão exprimido em acessos de fúria sem sentido. Se hoje eu não deixo de estudar para alguma prova é exclusivamente por isso.

 

Existe uma coisa nesse mundo que nunca vou esquecer é de quando mamãe pegou cinco reais na sua bolsinha de zíper, de um dinheiro que não podia gastar, e falou:

—Toma,meu filho. Vai lá e compra a sua catuaba.

Não é questão de ser álcool, nem muito menos de incentivo, mas de confiança. É você saber que existe alguém te entende totalmente e sempre estará ao seu lado. Pode ser dando dinheiro para meu álcool, chamando meu amigo vegetariano de bocó, ou falando do horóscopo chinês da minha garota. Dia 01º de dezembro não é o Dia Internacional da Mulher nem nada assim, mas vai ser o dia em que abrirei a porta da minha velha casa e abraçarei aquela mulher como se fosse a última coisa que fizesse na vida.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | outubro 10, 2008

Retrato da Ausência

É quando se chega aos doze anos de idade que as coisas começam a fazer sentido. Você começa a entender porque fica amedrontado ao chegar perto de certa garota, entende que passar a tarde jogando videogame ou brincando nem é tão legal assim e que o estudo vai atrapalhar sua vida por um longo tempo. Foi também nessa época que eu percebi que era um garoto com menos dinheiro que meus amiguinhos e que as coisas lá em casa não iam muito bem.

Morávamos em um prédio no centro da cidade, na mesma rua onde acontecem os desfiles de sete de setembro e onde os pivetes descem ponto por ponto roubando as bolsas de dezenas de mulheres nos fins de semana. Muito movimento, é ônibus pra tudo quanto é lado. Era cinco pessoas em nosso apartamento, considerando a Fera, nosso cachorro neurótico. O apartamento veio de herança do meu avô que nem cheguei a conhecer, minha mãe diz que ele morreu com cinqüenta anos de ataque cardíaco e naquela época não havia muito que se fazer nesses casos.

Nosso apartamento era bem simples, a decoração era muito antiga, aqueles ladrilhos azulados na cozinha e o chão cheio de tacos soltos. Apesar do pouco luxo, sempre vivi bem e não me lembro de nada que me traumatizasse. Só que eram tempos difíceis, meu pai trabalhava como um condenado tentando vender imóveis a todo custo. Minha mãe batia cartão em uma loja de brinquedos embaixo do prédio. Há quem pense que eu era um garoto de sorte por isso, mas era uma loja de brinquedos pedagógicos e não havia muita diversão por lá.

A gente sempre passou por problemas financeiros, lembro que o colégio particular em que eu e meu irmão estudávamos estava sempre atrasado, mas ainda sim estudamos no Ateneu Dom Bosco por um bom tempo. Por se tratar de um colégio de padres, achei que Deus poderia fazer um milagre perdoando nossas dívidas, mas depois chegou uma notificação dizendo que meu pai estava sendo processado e que teria que pagar tudo aquilo em suaves prestações. Lá em casa a geladeira estava sempre cheia de litros de água, acho que mamãe tentava esconder a ausência de comida com garrafas pet.

À medida que o tempo ia passando as coisas foram se agravando, as discussões eram cada vez mais freqüentes e aquilo pra nós filhos tinha se tornado algo habitual. Até que em uma noite de meio de semana, Barão, meu pai, chegou meio alcoolizado em casa e começou a discussão. Lembro que passava Matrix na TV e a pancadaria rolava solta, não somente no filme, mas na cozinha também. Eles nunca haviam se agredido fisicamente e aquela seria a primeira e última vez que veria aquilo acontecer.

Meus pais se divorciaram, meu irmão continuou morando na mesma casa com a dona Lucimara, o cachorro morreu de desgosto e eu me mudei pra Balneário Camboriú com meu pai. Hoje moramos de frente para o mar, temos uma televisão de 40 polegadas e meu pai tem muitas mulheres. Mesmo com tudo isso, ainda sinto falta de cada minuto que passei com aquela família. E se pudesse trocaria todas essas coisas por um fim de semana daqueles em que íamos para a chácara como uma simples família suburbana.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | setembro 30, 2008

A prática da infelicidade

Quando garoto nunca gostei de praticar esportes. Era difícil chegar no intervalo do colégio e admitir que sua habilidade era insuficiente para qualquer uma das práticas que movimentavam as quadras. Preferia sentar com seu grupo de amigos e falar de desenhos, jogos e bobeiradas juvenis, que raramente envolviam assuntos amorosos e muito menos esportivos. Sabíamos que não éramos os mais populares e talvez nem almejássemos isso. Estávamos unidos.

 

O futebol é a maior frustração para um garoto que não tem habilidade nem a pegada de um bom jogador. Devem ter sido uns 7 anos de educação física em que seus gostos não valem nada, você só tem que aceitar o esporte que um professor de calça de nylon vai lhe dizer.  E na minha escola esse educador se chamava Cafu, coincidência esportiva? Não, só podia ser um desmazelo. Ele não apenas queria que você treinasse e divertisse, mas que levasse o esporte como uma obrigação e disciplina.

 

Devia ser lá pela sexta série, me lembro bem de uma raça de estúpidos tirando as bermudas e ficando só de cueca dando muitas risadinhas para as meninas. E as meninas achavam isso o maior barato, aquilo sempre me assustou. Por que diabos ficaria mostrando a minha bunda em público pra me destacar? Mas nem é isso que me atormenta mais, é saber que o professor vê e sabe de tudo, mas nada faz. Ele preferiu jogar a bola na minha cara e me fazer passar vergonha em frente de toda a sala porque eu estava disperso

 

No começo você até quer se enquadrar no sistema atlético. Só que a cada jogo, partida e bolada na cara as coisas vão ficando mais difíceis. Tudo se acumula e você quer mais é fugir de tudo isso. Ai você desiste e fica lá por último na hora de ser escolhido. São esses momentos que todos nós tentamos esquecer, quando nos sentimos rebaixados por algo que nos é empurrado goela abaixo e você não pode recusar. Imagina repetir Educação Física de novo? É melhor fazer e ficar livre. No meu caso, eu fico desesperado quando recebo a bola e faço tudo errado, pode variar. Se for com meninas assistindo ou atletas desconhecidos eu estou lascado.

 

Passado a época dos traumas escolares eu optei por fazer somente o que gosto, pode me chamar para jogar umas mil vezes e usar todos os tipos de táticas para me influenciar, eu não vou. Se fosse fazer uma relação da quantidade de vezes que tive que aturar garotos me convidando para uma partidinha de futebol sem compromisso eu poderia comparar com as vezes em que a Bruna Surfistina foi para a cama com um homem.

 

Quando se é menor, nós pensamos que todas essas pequenas coisas são apenas uns testes necessários para amadurecer. Mas não, são nesses pequenos momentos dentro de cada sala de aula, dentro de uma quadra ou na diretoria de uma escola que já começam a te destruir. Você não sabe do que gosta, em que é bom e nem o que pensa em ser da vida, mas somente por não ter se encontrado eles te jogam do barranco. E pode ter certeza que quanto mais você crescer, o barranco vai ser mais alto e buraco cada vez mais fundo.

 

 

 

 

Publicado por: Renan Accioly Wamser | setembro 1, 2008

O Fio da Alma (Parte I)

Desde o primeiro dia que Jonas Junior botou o misero dedo do pé pra fora da barriga da sua mãe, seu cabelo, que quase não existia, o incomodou. Foram passando os anos, e o bebê que antes abria o berreiro quando alguém encostava nos seus fios de cabelo , cresceu e se tornou um garoto díspar. Não era a aparência que o tornava diferente, de longe um garoto normal com sardas e olhos verdes e aquela constante falta de músculos.

Jonas tinha um problema que levaria para o resto de sua vida. Não se sabe o que ocasionou isso, se foi hereditário ou um problema genético. Mas uma coisa era certa: Não deixar ninguém tocar e nem se aproximar do seu cabelo. Se ele achasse que existia uma missão nesse mundo para cada um de nós, a missão de Jonas era essa. Era uma força mais forte que ele, que transformava alguns bons momentos em momentos de fúria.

Antigamente se achava que Junior era um doente e as crianças do bairro tinham medo de ficar ao seu lado ou até de conversarem com ele, fazendo com que ficasse por fora do colégio por dois anos até confirmarem a não-doença. Talvez tenha sido o período mais feliz da vida daquele garoto, vivia em casa solitário e não tinha amigos, mas o que perdia lá fora ganhava em sua casa. Dona Lúcia, era mãe, amiga e conselheira sobre os mais diversos assuntos do mundo. Sabe quando se questiona alguém sobre alguma coisa e a pessoa responde : Não sei, porque é assim. Lúcia nunca usou essas palavras.

Jonas gostava de ler contos infantis que tinham crianças e casas na árvore, comprar picolés de groselha e sugar o a essência até ele ficar somente gelo, ir ao cinema sozinho e de observar as garotas que iam ao salão de beleza que ficava embaixo da sacada do seu apartamento. No tempo que esteve aprisionado em casa, o garotinho se apoiava em cadeiras para observar as meninas. Dos quatro aos quinze anos manteve aquele mesmo processo, só que todas as garotas que já tinham passado por ali ficaram no desgosto, ele não gostava de maquiagem, de chapinha e de nada que escondesse a beleza natural das meninas. Só achava a depilação necessária.

Era hora de ir para o colégio, beirava as 06:00 da manhã e era o oitavo ano. A primeira coisa que vinha na cabeça do agora jovem J.J era ter de enfrentar. Enfrentar o vento que sopraria seu cabelo para trás como uma turbina de avião durante o trajeto até a escola, enfrentar o porteiro brincando com seu cabelo e as centenas de jovens garotos que o olhavam atravessado como se fosse um animal que se defendia ao encostarem em seu pêlo. Podia cortar o cabelo como fosse: rapado, comprido, estilo asa-delta e até vassourinha. Não adiantava, era sempre a mesma coisa, aquela fissura em não movimentar um fio e desprazer de sentir ódio em cada instante que seu cabelo saía do lugar.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | setembro 1, 2008

O Fio da Alma (Parte II)

Seu único amigo inseparável e talvez a única coisa que o compreendesse naquele mundo era o Tob. Sua toca vermelha estilo caçador com proteção para os ouvidos. Ganhou de seu pai quando o mesmo foi caçar e nunca voltou. Tinha assinado o nome Tob nela, e assim ficou. Dos quatro aos quinze usou aquela toca como se fosse um escudo que lhe protegesse. E no colégio aquilo ainda dificultava mais um contato, era estranho demais para andar com os mais estranhos.

Quando alguém tocava o mínimo fiapo de seu cabelo ruivo era como se adentrassem em sua privacidade e descobrisse cada pedaço do seu ser, uma sensação parecida com a de puxar as cuecas de um garoto no pátio do colégio. E deus sabe o quanto isto descontrolava Junior. Podiam estar atirando no Papa que ele nada faria, e se o Papa passasse a mão em sua cabeça ele seria o atirador.

Nunca teve problemas com notas porque a rotina da sua vida o fez assim. Mas mesmo em sala fazia tudo sozinho e aquelas intermináveis ajudas dos professores em tentar enturmá-lo o machucava ainda mais. Até que um dia daquele oitavo ano, no começo da segunda aula a porta de metal se arrastou chão afora e a coordenadora entrou com um salto agulha bicando o chão. Podia ser mais uma nova regra do colégio ou quem sabe algum aviso bobo. Não, um novo aluno havia chegado ao colégio e ficaria naquela sala.

A coordenadora Sílvia puxou aqueles braços e logo Jonas percebeu que eram finos e longos braços que se iluminavam com a luz que saia lá de fora. Era uma garota e J.J a conhecia. De todas as milhares de garotas que já haviam passado no salão abaixo da sua casa, aquela que estava ali na sua frente havia sido a única que um dia ele pensou em encontrar. Logo após entrar no salão ela havia batido a porta de vidro e saído em disparada daquele lugar. Era como se seu desejo estivesse se realizando, pensou em correr, mas não foi. Nunca esqueceu aquilo.

Então a coordenadora bicou o chão com o salto como se estivesse alertando os alunos e exclamou:

— Está é a mais nova colega de vocês. Seu nome é Sara e ela acabou de chegar da Europa. Ela passou por momentos difíceis lá e gostaria que vocês a tratassem bem.

Cintia, estúpida nerd que sentava lá na frente, levantou a mão e com aquela curiosidade infame perguntou:

— Momentos difíceis, por quê?

A garota que até agora não havia falado nada, puxou a toca azul de lã que usava e mostrou a toda classe sua cabeça rapada, dizendo em alto e bom som:

— Leucemia, acabei de me recuperar.

Ao contrário de todos que estavam pasmos com aquela declaração, Jonas Junior sorriu.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | agosto 27, 2008

Diálogo

Abre os olhos cansado de sentir aquele prego roçando suas costas naquele duro sofá vermelho. Olha em sua volta e percebe que está tudo em ordem, menos o seu corpo. Vai ao espelho e percebe toda a imundície que percorre seu rosto. São aquelas rugas misturadas com uma pele tão oleosa que chega a manchar um pedaço do papel higiênico. Escuta a campainha.

– Cara, eu briguei com a Julia.

– Éééé?

– Velho, não sei mais o que fazer pra controlar aquela mulher.

– Quando não se consegue domá-las você precisa fugir delas.

– Eu não quero fugir dela, porra. Eu amo ela.

– Não, cara. Você ama outras coisas mais do que ela. Agora cala a maldita boca de menino chorão e pega as últimas duas cervejas que estão lá na geladeira.

– Oookay.

Procurou na roupa um ponto específico de tecido que ainda não havia sido rasgado pelas tampas ao abrir suas cervejas. Com mais dois pequenos buracos agora eram dezoito em toda a camiseta. Parecia um soldado alvejado de balas, soldado esse que não conseguia enfrentar uma simples batalha com uma garota.

– Conte-me o que aconteceu, cara.

– Aquelas coisas de sempre, sabe?

– Não sei. Eu ainda estou livre delas por um tempo. Uma hora a gente para de querer andar por aí atrás do perfume delas e imaginar como seria vê-las repousando em nosso colo.

– Ah! Ela me falou que eu não faço nada o tempo todo e que não agüenta mais ter de enfrentar toda a coisa sozinha.

– Acho que a posição de vagabundo é um privilégio e as pessoas não entendem isso. Eu nunca passei mais de um mês e um mesmo trabalho e hoje vivo aqui nesse condôminio de 25 andares com toda essa merda de prostitutas, safados, bêbados e outros vagabundos como eu. Eu sou feliz.

– Não estou falando disso, cara. Você não entende.

– Não entendo mesmo. Só sei que uma cerveja me faria feliz neste momento. Sabe, a gente não precisa tanto delas assim. Gosto mais de estar andando de mãos dadas de vez em quando do que ficar naquela meteção toda e cuidando da merda do café da manhã pra elas não se sentirem mal depois de tudo.

– Eu tenho dinheiro, vamos comprar mais umas cervejas. Hoje o dia não é feliz.

– É ai que você se engana. Seus critérios de felicidade não valem nada, mas gostei da idéia da cerveja. A cerveja é a felicidade. A gente pode trocar uma mulher por uma garrafa. Ela tem boca, mas não fala. Você usa e joga fora. E se for um desses safados loucos por meter em alguém, enfia seu negócio lá e seja feliz.

Desceram os 25 andares naquele elevador. Foram três paradas nos mais diversos andares e as pessoas escrotas passaram por ali ao lado deles com aquele cumprimento social pouco satisfatório. Era um dia cinza e os bares estavam mais sujos do que nunca, era o ideal. Puxaram uma mesa de canto, olharam pro garçom e a felicidade se aproximou.

Publicado por: Renan Accioly Wamser | julho 15, 2008

Amargura

       No lado leste do sertão de Minas Gerais, região pobre e desertificada pela extração do algodão, havia uma cidade chamada Quixim dos Baratinas. Era nesse pequeno vilarejo, descendo dois quilomêtros morro abaixo que morava o garoto Sillas. Em uma casa de grande varanda e um jardim extenso dos mais diversos tipos de plantas, em sua maioria já secas. Uma casa de inúmeros cômodos e janelas quadriculadas, diziam que era da época do escravismo, a casa dos peões. Vivia sua mãe, sua irmã mais nova e o Seu Zezo, o pai, além do cão Chumbinho.

Sillas sempre gostou de morar por ali, achava que o resto do mundo, que ele assistia a noite na pequena TV parabólica, era de uma bobagem incompreensível. Devido ao que as pessoas eram capazes de fazer com as outras, Sillas nunca pretendeu sair de sua terra e nem se desvencilhar da sua família. Passava os dias ajudando os pais com as tarefas da fazenda, passeando a margem do pequeno riacho que desembocava ali perto e andando a cavalo na imensidão daquele sertão generoso.

Ao longo de uns 70 metros da casa havia um declive de terra que acabava por esconder uma extensão do lago. Era como se fosse uma grande caverna, não tampada por rochas, mas por centenas de grandes árvores, algo totalmente distinto da vegetação do local. Era lá que o garoto mais gostava de ficar, entre aquela imensidão de sombras. Com restante de tábuas da reforma do curral e acima da maior das árvores construiu uma casa. Era perfeita, com escada, janela e até um grosso cipó para saídas mais apressadas. Ficava lá até o sol descer e tornar vermelho todo o horizonte, quando sua mãe gritava lá do meio do caminho. Era hora do jantar.

Fora avisado que no dia seguinte o tio Eustácio, da capital, chegaria para passar uns dias com seu irmão, o pai de Sillas. Nunca foi muito com a cara do tio, aparentava ser rude. Tinha uma barba grossa que tampava as marcas do seu rosto, que não eram poucas. Pôs-se a dormir até que no raiar do sol seu pai lhe acordou para que o ajudasse a apartar as vacas e tirasse leite de alguma delas para ajudar no sustento da fazenda. Quando voltou do curral, lá pelas dez da manhã seu tio já estava lá no alpendre do casarão segurando um pedaço de cana-de-açúcar e proseando com a mãe de Sillas.

Trocou um cumprimento com o tio e estranhou o quanto foi simpático, chegando até a lhe perguntar sobre namoradinhas e dar um leve tapinha em suas costas. Tamanho afeto nunca havia acontecido entre os dois, nem sequer conversavam. A mãe de Sillas lhe perguntou se poderia cortar a cana para seu tio, já que sempre carregava um belo de um canivete em sua bainha. Sillas cortou e passou os pedaços para sua mãe, quando foi pressionado a dar uma volta com seu tio para mostrar a fazenda, lugar esse que ele já conhecia de cor.

Ao passar pelo curral e a represa da fazenda, seu tio já havia lhe falado diversas afirmações sobre morar na capital e como a vida aqui era mais sossegada. Deslocou sua mão no ombro do pequeno garoto e continuou caminhando. Depararam com o refúgio de Sillas e o garoto temeu em lhe mostrar onde passava a melhor das suas horas. Mas ao ver a casa na árvore seu tio teimou em querer subir e ver tudo de perto. O rabo gordo de Eustácio subiu aquela escada fazendo estalar cada milímetro da madeira.

Seu tio resolveu sentar no toco que servia de poltrona e vir a falar de como estava bem feita, o garoto só se desviava das perguntas, cada vez mais freqüentes. Então Eustácio se levantou calmamente e falou que iria agradecer ao menino pela volta e iria lhe dar um presente. Desarrochou o sinto e puxou as calças para baixo. Com apenas 13 anos, Sillas nem sabia o que havia de acontecer ali. Só conseguia se lembrar de algo que havia visto na TV um dia. Algo sobre um homem que havia abusado de crianças.

Como que num reflexo Sillas empurrou Eustácio. O velho teimou em se aproximar e puxar os ombros do menino em direção a sua cueca. A cara do velho era desgostosa, havia um sorriso na sua cara misturado com uma malicia e a insatisfação de não estar conseguindo o que queria. Sillas descontrolado tentava escapar, mas o velho havia bloqueado a passagem de saída. Lembrou da cana-de-açúcar, da sua família e do canivete.

Puxou o canivete e sentiu uma boa sensação. Mirou no estorvo que o velho almejava e atingiu a virilha, foi rasgando a extensão da coxa até a marca da cirurgia de apêndice. Vazava sangue para todos os lados, o velho sentia a fúria e desgosto de ser um safado. Sillas ensopado de sangue agia como um animal atacando a preza. Estocou-lhe mais três furos na barriga e chutou o velho lá de cima. Aquele monte de banha caiu como um trambolho ao chão e lá ficou esparramado enquanto o sangue descia rio abaixo.

Sillas agora estava livre, pensou em tudo que tinha acontecido, mas sem pensar nas conseqüências. Agiu de forma espontânea. Levantou, olhou para si mesmo e para o velho, sentiu o ódio tremendo em seus dedos, arremesou o canivete longe. Ouviu sua irmã lhe chamar e se assustou. Pensou no que pensariam dele depois disso e por que o velho havia tentado tal coisa. Puxou o cipó a sua frente, enrolou no seu pescoço e de lá pulou, como se fosse um salto para liberdade apenas ouviu-se o estalar do seu pescoço.

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