Publicado por: Renan Accioly Wamser | dezembro 4, 2007

Buracos

Arado

      Esperei passar despercebido em quase todos os momentos. Não quero por o som alto para minha companheira imaginária e os milhares de vizinhos ouvirem minhas músicas ordinárias por todo o canto. Quero parecer o mais pacato e brando possível em meio a todo o tumulto da humanidade que vaga por aí. Desde criança tive a vontade eterna de aparecer o menos possível e nas apresentações de cartolina branca em frente a minha sala de todas as séries, era o lugar onde nunca quis estar. Analisando todas as minhas apresentações de colégio, eu me saí razoavelmente bem, nunca desmaiei lá na frente e nem um fui ditador com extrema habilidade labial.

     Quando as pessoas são mais velhas que você elas tem por obrigação lhe forçar a fazer as coisas que elas não têm coragem de fazer. Meu tio era assim. Eu nunca pensei nele como tio nem nada disso, porque quando eu tinha uns 10 anos ele já era menor que eu. Tinha um problema de crescimento que combinava com ele. Morava na fazenda e cuidava dela com todo amor e carinho de alguém que fugiu da civilização. Ele gostava de comer naqueles pratos de metal e nas xícaras de peão, eu achava aquilo demais e acabava queimando a mão na hora de comer. Engraçado, simpático e estranho.

     Todo mundo da família, eu já definia em minha cabeça seguindo um estereotipo dos filmes da TV. Minha avó era a pão-dura, meu avô o ex-combatente de guerra que queimava o lixo no quintal, minha tia a menina mimada superprotegida e minha mãe a mulher neurótica que casou com o cara errado. Você aprende isso ouvindo as brigas de família e tudo mais. Mas daquele meu tio eu não sabia nada direito. Só que ele gostava de comer a cabeça do peixe, jorrar pimenta na comida e que tinha matado o cachorro da fazenda sem motivos.

     Deve ter sido nas férias dos meu 11 anos. Eu e meu irmão fomos pra fazenda lá pelas bandas de Sanclerlândia, onde o mundo não era mundo. Achávamos que iria ser só diversão por um mês inteiro. Eu tinha um daqueles tênis da Adidas estilo basquetebol e lasquei ele todo ajudando meu tio nas tarefas diárias da fazenda Boa Esperança. As coisas começaram a se exceder quando eu percebi que estávamos arando o campo. Aquele cara, menor que eu, estava nos ordenando severamente a abrir buracos no chão em um calor dos diabos. Meu irmão levava torrões de terra nas costas e xingamentos por não guiar o cavalo direito.

     De todos os momentos da minha vida, aquele sol escaldante da tarde e o arado cortando o solo marrom da terra, nunca conseguiu sair da minha cabeça.  Outro desses foi quando andávamos de naquele Volkswagen Gol quadrado escutando ele falar de mulheres e nos obrigando a dizer o que faríamos com elas na cama. Minha mãe era a única mulher que eu conhecia, e como não sabia nada delas eu não conseguia expelir nenhuma palavra. Aquele cara me tirou do carro e me deixou no meio de uma estrada deserta. Sozinho ali, acho que decidi pelo resto da minha vida não falar sobre coisas que não sabia.


Respostas

  1. O pior são aquelas pessoas que desandam a falar sobre o que não sabem. =*

  2. Suas postagens são legais, arrisco até a dizer que é meu blog favorito. E olhe que eu sou, segundo você, “a mais fresca do universo”. Suas histórias familiares são engraçadas, ou talvez seja a sua forma de escrever. O texto fica limpo, enxuto e inteligente.

    Manda seu tio parar de mandar cães para o Cabra-homi que eu ficarei “muito puta com essa situação”.

    Beijos Flertador!

  3. Um jovem e com tantas reminiscências..rs Imagina você aos 60 ! rs…Eu acho suas histórias repletas de lirismo, isso mesmo, de uma cotidianidade lírica…Sei lá o q isso quer dizer..Mas são líricas..rs E ainda bem q vc não entro nos detalhes da morte de cão, eu choraria com certeza ! rs

  4. O flertador é um cara legal. E não mate cachorros, por favor.

    Gostei muito desse texto, Renan. Você tá cada vez melhor. E não é porque sou sua amiga.

    Aliás, quero saber logo como foi o show.
    E não mate mais javalis também!!

  5. Bom, Renan, digamos que Tom Jobim e Jorge Ben, independentemente de seus estilos de vida (burguês, alternativo, popular, boêmio e tals) têm lá seu valor artístico e é somente nisso que me baseio. rs. E o sentimento do povo brasileiro pode ser descrito com a bela poesia dita elitista – injustamente – de um burguês talentoso, como também pela poesia fácil e popular e bonita de um cantor bem humorado e acessível. Pena que por questões de marketing e mídia, nenhum dos dois cai no gosto popular. E ai o Calypso reina…Confesso, que apenas por questão de preferência pessoal, o piano tocando ao fundo desta poesia abaixo, me emociona profundamente. Mas é claro que o meu gosto particular não é necessariamente o retrato da cultura do Brasil.rs. Vc tem razão.

    Rua,
    Espada nua
    Boia no céu imensa e amarela
    Tão redonda a lua
    Como flutua
    Vem navegando o azul do firmamento
    E no silêncio lento
    Um trovador, cheio de estrelas
    Escuta agora a canção que eu fiz
    Pra te esquecer Luiza
    Eu sou apenas um pobre amador
    Apaixonado
    Um aprendiz do teu amor
    Acorda amor
    Que eu sei que embaixo desta neve mora um coração

    Vem cá, Luiza
    Me dá tua mão
    O teu desejo é sempre o meu desejo
    Vem, me exorciza
    Dá-me tua boca
    E a rosa louca
    Vem me dar um beijo
    E um raio de sol
    Nos teus cabelos
    Como um brilhante que partindo a luz
    Explode em sete cores
    Revelando então os sete mil amores
    Que eu guardei somente pra te dar Luiza
    Luiza
    Luiza

    Mas

    Chove chuva
    Chove sem parar
    Chove chuva
    Chove sem parar

    Pois eu vou fazer uma prece
    Pra Deus nosso senhor,
    Pra chuva parar
    De molhar o meu divino amor

    Que é muito lindo,
    É mais que o infinito,
    É puro e é belo
    Inocente como a flor

    Por favor chuva ruim,
    Não molhe mais
    O meu amor assim…

    Também esta´OK… rs

  6. Nossa, esse post me lembrou de um livro que li na minha infância, em que um menino foi levado a um desses “campos de delinquentes juvenis” por algum motivo e lá era obrigado (junto com seus colegas) a cavar buracos, supostamente para “criar juizo”. Mas tinha uma super-conspiração no meio e um tesouro escondido… enfim, coisas de livros. Chama “Holes”, se nao me engano. Anos depois a Disney fez um filmezinho baseado nele, mas acho que só foi exibido naquele Disney Channel.
    E o show, como foi?
    Sting estava tão maravilhoso como de costume? 😀

  7. Essa parte de falar sem conhecer, me lembrou nossa querida titia. :s


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